Hoje, 29 de outubro, é um dia de comemoração dupla: uma alegre, pelo nascimento de meu irmão Fábio e outra triste, pelo falecimento de meu querido e saudoso amigo Guilherme.
Há 39 anos, nascia, em Buenos Aires, Argentina, meu irmão em um hospital público, através de um parto normal atendido por parteira. Foi o segundo filho de minha mãe, que já tinha a mim, com 15 meses de idade. Um ano e três meses mais tarde, minha família embarcava em um avião rumo a São Paulo, que foi nosso primeiro lar no Brasil. Dois anos mais tarde, chegamos ao Rio Grande do Sul, que se tornou nosso lar desde então. Passamos boa parte de nossa infância em Charqueadas, a 50 km de Porto Alegre, na Vila Residencial Aços Finos Piratini, onde tínhamos liberdade para brincar e correr na rua até tarde da noite, sem perigo de trânsito ou assaltantes. Muito brincamos de esconder, polícia e ladrão, andamos de bicicleta, skate e carrinho de rolemã e nos divertimos a valer na piscina do Clubinho.
Lembro também de nossas longas viagens de carro à Argentina, onde íamos visitar nossos parentes (avós, tios e primos), terrivelmente entediantes para meu irmão e eu, que quando nos cansávamos de brincar, começávamos a brigar no banco de trás. Depois, na Argentina, nos divertíamos falando em Português entre nós, para que nossos primos não nos entendessem. Ou quando meu irmão me batia e eu reclamava para minha mãe dos socos e tapas que o Fabio havia me dado e meus primos perguntando: "¿Que es 'soco'? ¿Que es 'tapa'?". E também de quando ríamos das vozes dos dubladores da televisão argentina, tão acostumados que estávamos com os dubladores brasileiros. De brincar com nosso primo caçula na casa de nossa avó e de fazer bagunça na hora da "siesta", quando todos os adultos da casa se deitavam e nós, crianças, ficávamos livres para fazer o que queríamos. De ir comprar balas, chocolates e pirulitos no "kiosco" da esquina e de ir comprar pão na padaria e dar intermináveis explicações ao padeiro e a todos os vizinhos que éramos os netos de Doña Amalia e Don Atílio que viviam no Brasil. De ensinar palavrões em Português para a criançada da vizinhança, que se deliciavam repetindo os palavrões sem signficado para eles.
Meu irmão e eu freqüentamos as mesmas escolas até o 2º grau, quando cada um seguiu um rumo diferente, mas chegamos a cursar a mesma universidade e tivemos aula até mesmo com os mesmos professores em algumas cadeiras, já que ele cursou Engenharia Elétrica e eu, Matemática. Eu entrei inicialmente para Ciências Sociais e dois anos mais tarde pedi transferência para a Matemática, assim, ao cursar as disciplinas de Cálculo, eu pedia ajuda a meu irmão, que já havia cursado essas disciplinas. Lembro dele rir de mim, quando eu ainda não sabia calcular limites, derivadas e integrais e de caçoar, perguntando onde eu aplicava o que aprendia na Matemática, já que as disciplinas deles eram puramente de aplicação e as minhas, essencialmente teóricas.
Mas fora a questão universidade, nossas vidas tomaram rumos diferentes ainda na adolescência, quando eu comecei, aos 15 anos, a freqüentar a Igreja Batista e a qual meu irmão nunca quis me acompanhar, já que ele se denomina ateu, como nosso pai. Nossos grupos de amigos não eram os mesmos e muito menos nossas crenças. Quando meu irmão se formou na UFRGS, em janeiro de 1993, eu estava trabalhando como equipante voluntária no Acampamento do Palavra da Vida do Paraná e voltei de lá somente para estar presente à sua formatura, pois eu havia me comprometido para passar o verão todo lá. Ele é meu único irmão e eu não queria estar ausente em um evento tão importante de sua vida. Na formatura dele, estava presente meu grande e querido amigo, Guilherme, cujo amigo Rogério se formou junto com meu irmão.
Conheci o Guilherme na Mocidade da Conde, quando ambos tínhamos 17 anos e ele estava prestando vestibular para Medicina. Ele era um rapaz muito puro, sensível e amigo para todas as horas. Nós nos identificávamos, porque éramos ambos sozinhos na Igreja, já que nossas famílias não a freqüentavam e não tínhamos origem alemã, senão latina. A maioria esmagadora dos jovens da Mocidade tinha a família na Igreja, a Igreja Batista Alemã, a Conde, e quase todo mundo era primo de todo mundo. O Guilherme e eu éramos os "forasteiros", que íamos à igreja por vontade própria, não por imposição de nossos pais. Muito pelo contrário, nem os pais deles, nem os meus, viam com bons olhos nossa dedicação e assiduidade à igreja. Os pais dele, por serem católicos, e os meus, por serem ateus. Muitas e muitas vezes nós dois tivemos longas conversas sobre as dificuldades de sermos jovens cristãos em lares não evangélicos, de como nossos pais não compreendiam nossa fé e de como os meus muitas vezes me proibiam de ir à igreja. O Guilherme, com uma fé muito mais forte e dedicada que a minha, sempre me dizia para orar e pedir a Deus, pois um dia nossas famílias conheceriam a Deus. Nossa amizade transpôs os limites da igreja e ambos conhecíamos a família do outro, tanto que meus pais gostavam muito dele e os pais dele, a mim. Mesmo depois de 11 anos de seu falecimento, ainda sou amiga da família dele, seus pais, seus irmãos e sua avó, a quem considero a avó que eu sempre quis ter.
Lembro de quando o Guilherme tinha que decidir por uma especialidade médica e eu sugerir a Pediatria para ele. Ele me perguntou: "Tu achas que eu tenho jeito para pediatra?" e eu respondi: "Claro que sim! E um dia tu serás o pediatra de meus filhos!". Infelizmente, isso nunca se tornou realidade pois o Guilherme veio a falecer em um acidente de carro em 1997, alguns anos antes de eu me tornar mãe.
Nunca vou esquecer esse dia, 29 de outubro de 1997. Nosso amigo em comum, o Rogério, o mesmo da formatura, me ligou quase à meia-noite e eu atendi o telefone:
- Oi, Rogério, tudo bem? (estranhando o fato dele estar me ligando àquela hora)
- Não, não está nada bem. (suspiro de quem andou chorando)
Nessa hora, percebi que havia algo errado. As palavras saíram de minha boca sozinhas, sem pensar:
- Quem morreu?
- ... (silêncio)
- QUEM MORREU? - repeti eu
- O Guilherme! (chorando) - respondeu ele
Nesse momento, eu desabei a chorar, sem poder acreditar que havia perdido meu melhor amigo, meu amigo de todas as horas, meu apoio e a quem eu amava muito!
Deixo aqui minha homenagem àquele que foi o melhor amigo que eu já tive e de quem tenho enormes saudades. Ainda choro por ele, quando começo a lembrar. Eu o amei muito, mas nunca houve nada entre nós mais do que uma grande e sincera amizade. Ele foi um apoio muito grande nas horas que precisei, especialmente quando terminei meu noivado em 1992. Ele não permitiu que eu ficasse sozinha, depressiva, chorando em casa e me levava à igreja junto com ele. Foi meu acompanhante em casamentos e aniversários e sempre esteve presente, quando eu precisava de seu apoio. Sinto muitas saudades dele, mas sei que um dia vou reencontrá-lo, lá no céu, junto ao Pai. Então será somente alegria e eu vou poder sentir novamente o calor de seu abraço.
- Guilherme, que saudades!!! - direi eu, correndo para abraçá-lo
- Agora a saudade não existe mais, estamos junto ao Pai - dirá ele, com seu largo sorriso.
11 comentários:
Oi Carla,
Parabéns ao teu irmão! Parece ser uma pessoa super bem disposta!
A vossa infância parece yer sido divertida e muito rica também (duas culturas diferentes enriquecem qualquer criança)!
Sinto muito quanto ao Guilherme! A maneira como o descreves enternece qualquer pessoa :).
Parecia ser uma excelente pessoa!
Agora, o que me captou a atenção foi o facto de teres crescido numa família ateia, e tu teres-te tornado Cristã Baptista: como foi que recebeste o "chamado"? (Desculpa estar a intrometer-me, mas este tipo de assunto interessa-me imenso; não tens de responder se não quiseres)
Muito boa esta homenagem! :)
Beijos
Max,
Tive uma boa infância e brinquei (e briguei) muito com meu irmão.
Realmente, eu fui criada no ateísmo, apesar de meus pais serem católicos nominalmente, pela tradição familiar. Eles não nos batizaram na Igreja Católica, por deixar que nós escolhêssemos quando maiores.
Quando eu tinha uns 10 anos, vi todos meus colegas indo à catequese para fazer a Primeira Comunhão, enquanto que meus pais jamais me mandaram. Eu até ia junto com eles nas aulas, para não me sentir diferente de todo mundo. Mas nunca cheguei a tomar a comunhão. Aos 11 anos, eu consegui me batizar na Igreja Católica na Argentina, pois eu não me conformava em não ser batizada.
Aos 14 anos, entrei para fazer o 2º grau (hoje Ensino Médio ou secundário) em uma escola luterana. Lá, aprendi sobre Deus, Jesus e a Bíblia nas aulas de religião. Eu nunca havia manuseado uma Bíblia antes. Na metade daquele ano, após completar meus 15 anos, resolvi visitar a Mocidade da Igreja Batista que ficava a duas quadras e meia de minha casa. Eu sempre via muita gente na frente e tinha muita curiosidade em conhecer. Fui muito bem recebida e o que me chamou a atenção foi que aqueles jovens VIVIAM o que eu havia aprendido nas aulas de religião. Descobri então que o vazio que eu sentia dentro de mim era a falta de Deus. Converti-me e tornei uma cristã fervorosa por 15 anos.
Afastei-me da Igreja em 1998 e tornei a freqüentar uma Igreja Batista e ter comunhão com os outros irmãos cristão novamente este ano.
Eu quis me batizar na Igreja Batista aos 15 anos, mas meu pai não me permitiu, alegando que eu já era batizada na Igreja Católica e que ele não se sentia confortável com minha decisão. Seguindo a orientação do pastor, eu obedeci meu pai e não me batizei, para meu grande desgosto. Só consegui me batizar aos 21 anos, mas na ocasião eu freqüentava outra igreja, a Aliança Bíblica de Porto Alegre.
Hoje eu freqüento a Igreja Batista Mont'Serrat com meus filhos.
Oi Carla,
Sei bem como é ter irmão lol!
Obrigada por teres respondido à minha questão :D!
Wow...és a primeira pessoa, que tendo vindo de uma família ateia, que oiço dizer que antes de entrares para a Igreja te sentias vazia sem Deus.
Estou feliz por te teres virado para Deus e por teres encontrado o teu caminho através de Jesus :D! Sou a favor de qualquer tipo de espiritualidade, porque o ser humano não deve andar vazio!
Mais uma vez obrigada, minha linda :D!
Beijos
Carla,
Que Deus te abençoe: enfrentaste obstáculos para chegar onde chegaste hoje :D!
Beijos
Carla,
Que história linda,mas triste. Continue demonstrando amor e afeição ao seu irmão e orando por ele, um dia Deus o salva. Quanto ao Guilherme está com o Senhor, não queríamos, mas está bem melhor, desfrutando das delícias.Grande beijão!!!!
http://evelyns-place.com/compartilhandoasletras/ Esste é o novo endereço do Compartilhando as Letras.Gostaria que vc atualizasse para receber a informação dos novos posts.Beijão!!!!! Que Deus continue te abençoando,frutificando,dando sabedoria e paz!!!!
Carla,
Foi legal saber um pouco da história da tua família. Imaginei o quão divertido era pra vocês pequenos o fato de falarem as duas línguas na américa latina.
Já na segunda parte, sobre o Guilherme, o clima mudou. De divertido para sentido, saudoso. Eu conheci pouco o Guilherme, mas o suficiente para termos sido amigos. Ele se interessava muito pelos outros. Nos visitava sem avisar, e trazia um pão (de meio quilo. Lermbra destes pães?) para o café. E não perdia tempo de dizer palavras de encorajamento. Lí o que escrevestes e me emocionei. Porquê ele? E daquela maneira hein? Perguntas que não tem respostas e que lá no céu saberemos mesmo sem perguntar.
Muito legal tua homenagem à memória dele e a amizade que ainda manténs com seus pais.
Abraço.
Paulo Ricardo.
Querida Carla, me emocionei muito ao ler tua homenagem ao Guilherme. Nem preciso dizer que chorei, né?Ao ler revivi tudo o que o Guilherme passou e relembrei o início da amizade de vcs., lá na Igreja Batista.
Saudades eternas dele. E dói. Muito.
Obrigada pelo carinho, pela lembrança, pela amizade sincera, pela presença em nossa família. Obrigada pela linda homenagem ao meu irmão.
Beijos.
Muto bonita a homenagem Carla.
Me emocionei ao ler e relembrar a sequência dos acontecimentos...
Saudades dele!
Bjo
Carla,
texto emocionante. Parabéns pro teu irmão - super atrasdo, estou em falta com vários amigos do blog...
Gostei de conhecer um pouco mais sobre sua família.
Ah, em breve vou querer muitas dicas sobre parto e devo freqüentar seu blog bastante: estou grávida e quero ter parto normal, já que na gravidez do meu Gui precisei fazer cesária. Confesso que sou MUITO medrosa, mas quero viver essa experiência por mim e pelo babê. Vamos trocar muitas figurinhas!
beijos e bom fim de semana
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